20060119

Vida

Há uma razão para nós não nascermos automaticamente adultos. E quando se diz uma quer-se dizer, é claro várias...
Temos,claro, para começar o aspecto físico. A grande vantagem de se nascer pequenino e desprotegido é que toda a gente gosta de nós e nos quer bem. De repente começamos a existir e imediatamente o panorama é "tão fofinhoooo", "bébé qué comê?", "anda cá... anda cáaa". Uma breve análise do mundo em nosso redor rapidamente indicaria que se nascessemos na nossa fase adulta (ou, Deus não o permita, na nossa fase adolescente) seria muito pouco provável encontrar alguém que nos achasse minimamente interessantes e atractivos. O resultado seria provavelmente uma quantidade grande de gente estúpida morta.
Porém, o factor de maior importância de se nascer sub-desenvolvido é que nos dá tempo para organizar as ideias. Não sendo necessário o uso de grande raciocínio durante os nossos primeiros anos, nós de bom grado assim o fazemos e ocupamos o nosso tempo a obter impressões sensoriais para bastante mais tarde nos darmos ao trabalho sobre elas.
Assim, o nosso bébé comum tende normalmente a ter a sua atenção capturada por movimentos e objectos que não se enquadrariam normalmente no nosso raciocínio. Uma folha perfeitamente normal cai de uma árvore e rapidamente eles são levados a paroxismos extremos de confusão, o nascer do sol apanha-os completamente de surpresa todas as manhãs, mas um elefante passa a meio metro deles a fazer malabarismo com três caçadeiras de cano serrado e pura e simplesmente não consegue chamar a sua atenção.
Isto, embora depois de atingirmos a maturidade sensorial possa parecer quase patético, é uma melhoria consideravel ao que seria se de repente fossemos colocados ao mundo na nossa fase racional.
Sem mais delongas, o homem-recém-nascido.

"O que está a acontecer?"- pensou ele.
"Peço desculpa, quem sou eu?"
"Olá?"
"O que estou eu a fazer aqui? Qual é o meu objectivo?"
"O que quero eu dizer com quem sou eu?"
"Ok... Calma... Tenho de me controlar... oh! Isto é uma sensação interessante na minha- bem, se calhar é melhor eu começar a dar nomes às coisas que for encontrando se é que que quero fazer algum ao que eu chamarei progresso no que eu chamarei de mundo- por isso vou chamá-la de barriga. Hmmm... Bom... Está a ficar bastante intensa esta sensação... E o que será este barulho assobiante e forte que sinto a passar pelo que passarei a chamar de minha cabeça? Se calhar o melhor é chamá-lo vento! Será isso um bom nome? Deve servir... Talvez mais tarde lhe encontre um nome melhor quando descobrir para que é que ele serve. Deve ser bastante importante, tendo em conta a quantidade dele que há por aí."
"Hey! O que é isto? Vou chamar-lhe pilinha. Sim, pilinha. Hey! Consigo abaná-la muito bem não consigo?!Wow! Wow! É tão interessante! Não parece ter nenhum propósito mas mais tarde descubro para que é que serve! Bem... Já alcancei uma imagem coerente das coisas?"
"Não."
"Deixa lá... Na verdade isto é bastante excitante. Tanta coisa para descobrir, tanta coisa para antecipar... Na verdade até estou tonto com a excitação!"
"Ou será o vento?"
"Há mesmo uma enorme quantidade disso não há?"
"E.. wow! O que é aquela coisa a vir na minha direcção muito rapidamente? Tão rápida!! É tão grande e plana e verde, precisa de um nome importante e imponente. Hmmm...ã... ão...cão.... chão!! É isso!!! É um óptimo nome: chão! Será que ele quer ser meu amigo?"

E o resto, a seguir a um baque doloroso e surdo, foi silêncio.

Ok... Admito que os homens, mesmo que nascendo adultos, não costumam nascer a cair de ravinas.

Enfim.

20060115

O fazedor de sanduíches

Ao Gui e ao Rui Catalão. (E juro que nunca mais escrevo nada do género)

Há uma arte na tarefa de fazer sanduíches à qual poucos terão alguma vez o tempo necessário para a explorar em profundidade.
Ao iniciar conversa com um fazedor de sanduíches comum (se é que o detentor de tal profissão pode alguma vez ser comum) ele rapidamente lhe dirá duas coisas essenciais. A primeira é que o termo "fazedor de sanduíche" é extremamente pejorativo. Seria basicamente o equivalente a chamar a um bombeiro "apagador de fogos", a um professor "transmissor de conhecimentos dúbios" ou a um advogado "inventor de desculpas profissional".
O termo correcto que dignifica a profissão será então sanduicheiro, termo que passaremos a tomar como certo até prova empírica do contrário. A segunda pérola de sabedoria que ele transmitirá será que a sua profissão lhe dá variadas e profundas oportunidades de satisfação pessoal: a escolha do pão certo, por exemplo.

O sanduicheiro tradicional passará então vários meses de reflexão e consultação com o padeiro (e não "fazedor de pão", argumentaria o sanduicheiro) de modo a criar o pão com a consistência exacta de modo a ser denso o suficiente para ser cortado em fatias finas, embora continuando a ter uma consistencia leve e fresca e mantendo o sabor ligeiramente adocicado que tanto melhora a qualidade da sanduíche média.
Há também a geometria da fatia a ser cortada a ter em consideração. A relação precisa entre a altura e largura da fatia e também a sua espessura em muito contribui para dar à sanduíche uma sensação de volume e suculência- neste ponto também, a leveza é uma virtude, mas também o são a firmeza, generosidade e a promessa de riqueza de sabor que são os pilares de uma experiência sanduística verdadeiramente intensa.

As ferramentas certas são, obviamente, cruciais. E durante os muitos dias em que o sanduicheiro não estava em conversações com o padeiro á beira do seu forno, lá estava ele testando com o fazedor de facas (neste caso nem a obstinação do sanduicheiro comum o leva a arranjar um nome melhor, dado que faqueiro é o nome de um utensílio de cozinha) o peso e precisão das facas, testando-as e melhorando-as. Firmeza, força, comprimento, resistência, flexibilidade e o quão o gume deve ser afiado eram assuntos debatidos incansavelmente entre os dois. Teorias eram lançadas, testadas e refeitas de modo a alcançar a faca ideal.
Na verdade três facas são requeridas para a profissão. A primeira é a faca de cortar o pão: uma lâmina firme, autoritária que possa impôr a sua vontade com firmeza no pão. A segunda é a faca de barrar manteiga, uma faca pequena e flexivel e deslizante mas mesmo assim com uma certa firmeza de carácter. As primeiras facas deste género eram feitas demasiado flexiveis, mas agora uma combinação entre a flexibilidade e uma certa força interior tornou-se a mais perfeita para assegurar leveza no barrar.
A terceira e mais importante faca era, claro, a faca de cortar a carne e o queijo. Esta não era uma faca que meramente impunha a sua vontade no meio que cortava, como fazia a faca do pão. Esta tinha de trabalhar com o meio que cortava, tinha de ser guiada pela substância do que cortava de modo a obter a mais perfeita consistência e leveza das fatias que eram cortadas do bloco de matéria prima.

Assim, com um golpe de pulso, o sanduicheiro faria saltar a fatia de carne translúcida e acabada de cortar para cima da perfeitamente bem proporcionada fatia de baixo da sanduíche, adequá-la ao tamanho da sanduíche com quatro golpes de faca rápidos e com mais quatro movimentos dextros de pulso encaixar como num puzzle dentro da sanduíche, os restos de carne cortados. Com a mesma faca de carne o sanduicheiro repetiria então o mesmo processo com o queijo e os vegetais, passando então finalmente a sanduíche para o seu assistente que acrescentaria o condimento e poria finalmente a parte de cima da sanduíche nela.

A reacção de todos os que comem uma sanduíche preparada por tais mestres é sempre a mesma: A dentada, o arregalar dos olhos, o degustar e mastigar, seguidos da famosa frase.
"Esta sanduíche não está nada má!"

20060109

Há muito que o rio Tejo já não é propriamente o sítio mais limpo onde se tomar banho. Poderão, é claro, argumentar que também está longe de ser o pior, ao que eu argumentarei de volta que mesmo assim não será o melhor.
É claro que daí a criar vida vai um grande passo. A vida não se cria com um estalar de dedos e é necessário um ambiente muito específico para a fazer surgir. Se o ambiente for demasiado tóxico e poluído nada nascerá de lá, a não ser talvez baratas, as quais toda a gente sabe não serem as formas de vida mais afáveis existentes no planeta (e nem pouco mais ou menos as mais inteligentes, se lhes prestarem alguma atenção), por outro lado demasiado limpo e não haverá nada que faça por milagre aparecer nova vida.
Nesse ponto, concordarei com vocês, o rio Tejo tem o ambiente ideal.
Um dia a passear pela zona das docas à noite (numa daquelas noites em que toda a gente ou já ficou estupidamente bêbeda e foi para casa curar ressaca, ou estava estupidamente sóbria e foi para casa aborrecida ou estava estupidamente no ponto ideal e foi para casa comemorar a ocorrência) e encontrei-me numa daquelas alturas em que o rio cheira muito mal.
Muito mal.
Um grande indicador de que algo cheira mal é o cheiro ganhar características físicas sólidas. Após tal ocorrência dificilmente poderá cheirar pior.
Neste caso o cheiro demonstrava-se perante mim de uma maneira bastante sólida, se bem que bastante relaxada, flutuando alegremente pelo rio. Enquanto observava as suas várias manifestações, uma delas decidiu-se a passar perigosamente perto da margem acenando-me alegremente.
Eu, claro, acenei de volta.
A coisa debateu-se para vir dar à margem e fez um esforço para subir para o passeio.
"Olá" -disse-me ela- "Acabei de ser criado. Sou completamente novo no Universo em todos os aspectos. Há alguma coisa em que me possa ajudar?"
Menos impressionado do que deveria estar numa situação destas respondi-lhe com um aparente à vontade que talvez lhe pudesse mostrar alguns dos bares.
"E o que me diz àcerca de amor e felicidade? Sinto que vou ter grandes necessidades de coisas desse género"- disse-me ele abanando uns tentáculos- "Algumas pistas que me possa dar?"
"Podes arranjar um pouco disso nos bares que te mostrar", disse eu, um pouco aborrecido pelo que eu considerei uma franca interrupção no meu processo de me sentir mal comigo próprio, sozinho e francamente pouco feliz.
"Sinto instintivamente"-disse o bicho com um ar de grande urgência-"que deveria ser bonito. Sou?"
"És bastante directo, não és?"
"Não há grande coisa que ganhe em arrastar-me por aí. Sou ou não?"
A coisa estava basicamente a escorrer por todo o lado agora, a fazer bolhinhas e o som de alguém a andar na lama. Um bêbedo que andava por perto começou a interessar-se pelo que se estava a passar.
"Para mim?"- disse eu- "Não. Mas ouve. A maioria das pessoas tem sexo de qualquer maneira sabes? Não há mais nenhuma forma de vida da tua espécie por aí?"
" Não me perguntes a mim, idiota. Como eu disse sou novo por aqui. A vida é algo de completamente estranho para mim. Como é que ela é?"
" A vida"-disse eu- "é como uma toranja."
"Huh... Como assim?"
" Bem, é assim tipo amarelo-alaranjada e rugosa por fora e molhada e viscosa por dentro. E tem caroços no meio também. Ah, e algumas pessoas comem meia ao pequeno-almoço!"
"Há mais alguém por aí com quem eu possa falar?"
"Huh, suponho que sim, basta pedir a um polícia"

E assim foi o meu primeiro encontro com a criação. Depois disto entendi um pouco como Deus se deve ter sentido consternado a tentar explicar a Vida à vida.

20060107

Back!

E dos mortos todos acabam por regressar...

Pois é... Finalmente decidi voltar a pôr-me online após uma ausência prolongada de quase um ano. Muito foi feito desde aí (provavelmente mais do que no resto da minha vida inteira), mas talvez a mudança mais significativa tenha sido a passagem da simpática FDL para a excelente ESCS. Reparem que tento ser imparcial ao comparar ambas as faculdades (hehehe) mas a verdade é que como eu devia ter sabido desde sempre, comunicação é a minha área e o Direito...bem... é um pesadelo, mais coisa menos coisa. O equivalente em termos absolutos seria tentar forçar um macaco com problemas de concentração a decorar as estatísticas diárias da bolsa dos ultimos 3 anos. Quem não nasce para aquilo passa realmente um mau bocado. Acrescente-se, não obstante, que as saudades dos amigos que lá fiz são mais que muitas, aliás tantas que me vejo obrigado a visitá-los uma vez de dois em dois meses.

Este Blog? Bem... Tendo em conta que estamos num ano novo (e que ano novo até agora) decidi voltar a escrever as minhas palhaçadas. Até porque ando num humor anti-emo, logo não me apetece escrever nem ler desilusões amorosas e existenciais. Em vez disso hoje conto uma estória:

Um dia, numa mesa no colombo em hora do almoço, estava a fazer tempo para não ter de ir para casa, sitio bastante aborrecido na sua generalidade. Decido então sentar-me na unica mesa que encontrei vazia, com um livro óptimo que estava a ler, uma garrafa de água e um pacote de bolachas de água e sal. Pouso também o jornal que carregava comigo.
Ponho-me a ler. Nisto, devido ao colombo estar excepcionalmente cheio, senta-se um senhor de certa idade na minha mesa, à minha frente, pondo-se ele a ler o jornal.
Passo então a dar a visualização da cena: Mesinha redonda, eu e o senhor frente a frente, entre nós o meu livro e o jornal dele (o meu era o "Hitchhiker's Guide to the Galaxy", o dele o Expresso), à minha direita o meu jornal dobrado e à minha esquerda a minha garrafa de água. Entre nós o pacote de bolachas de água e sal.
Eis que o bizarro acontece. O senhor, de aspecto perfeitamente educado e banal, debruça-se sobre a mesa, pega no pacote de bolachas entre nós, abre-o e... tira uma bolacha, apressando-se a comê-la.
Fiquei completamente estupefacto, mas dada a situação fiz o que qualquer jovem decente europeu faria... Ignorei-o. Explico em minha defesa que uma situação destas não é propriamente uma à qual o nosso cérebro esteja preparado para lidar de um momento para o outro. Quando me criaram nunca me deram directivas para usar num caso como estes.
Contudo, a história continua. Decidi reagir concentrando-me furiosamente no meu livro e fazendo um esforço para o ignorar. Porém preparando-me para a batalha, debrucei-me também sobre a mesa, e tirei uma bolacha também, fazendo de conta não achar estranho o meu pacote estar já misteriosamente aberto.
O que fez ele? Simples e incrivelmente tirou outra bolacha do pacote. Tirou-a e comeu-a, tão simples como isso. E o problema era que não tendo dito nada da primeira vez, torna-se muito mais difícil dizê-lo da segunda. Não... Não podia dizer nada por isso decidi ignorá-lo ainda com mais força do que da vez anterior.
Porém, não desisti de ir à luta outra vez, e preparando-me para o impacto, tirei outra bolacha do pacote, fazendo um ar tão natural quanto possível! E aí... Finalmente... Por uns instantes... Os nossos olhos fixaram-se... E de repente sentiu-se toda a electricidade no ar, a tensão que se acumulava.
E assim fizémos até acabar o pacote de bolachas, que embora só tivesse dez, pareceu uma vida inteira de bolachas a passar. Tenho a certeza que gladiadores nunca tiveram batalhas mais exaustivas do que a nossa.
Finalmente, com o pacote vazio entre nós, o senhor decide por fim levantar-se e ir-se embora. Eu, é claro, não consegui deixar de lançar um suspiro de alívio. Passada esta crise acabei a minha garrafa de água, levantei-me, peguei no livro e no jornal, e...
...
debaixo do jornal estava o meu pacote de bolachas.

E pronto, esta é a minha estória. Ainda não me aconteceu, o que não quer dizer que nunca vá acontecer, e não é propriamente original, mas num universo infinito o que é que podemos fazer que ainda não tenha sido feito algures?
So long, and thanks for all the fish.